Não vai jantar hoje

A minha avó Clara não vai jantar hoje em casa e ela nunca se atrasa para o nosso jantar.
A minha avó Clara não vai jantar hoje em casa e a caixa amarela dos medicamentos vai ficar fechada. Cheia de comprimidos brancos, azuis, verdes, roxos e amarelos. A caixa das vidas para a vida. É assim que gosto de a chamar. E ela adora falar-me das cores e dos poderes mágicos de cada comprimido. Ela finge que não precisa deles. Eu finjo que acredito.
Tenho a sorte de ter uma avó velha, tão nova quanto eu. Já não corre e ri-se comigo dos outros que encharcam as camisolas e os calções de licra a correr na marginal. “Vão com pressa! Não sei se chegam a tempo!” Rimo-nos as duas.
Digo-lhe sempre: avó, eu não sei o que será deste mundo quando não tiver mais velhos tão novos quanto tu! Ela diz-me que o problema do mundo são as prateleiras, onde se guardam os livros, os copos, os pratos, os bibelôs que ninguém quer, as caixinhas de música, os discos, os álbuns de fotografias. O problema do mundo começa nas prateleiras onde guaramos tudo. Em casa da avó Clara os livros estão espalhados na sala, no chão do quarto ao lado das mesinhas de cabeceira e até na casa de banho. Ela diz que podemos ter vontade de ler um livro a caminho do quarto, ou da cozinha para ir buscar o jantar. Ela diz que não guarda os livros em prateleiras, nem tudo o que mais lhe importa, para poder tropeçar neles todos os dias e saber que está vida.
A minha avó Clara não vai jantar hoje.

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