A carta

Já passaram alguns meses desde a última vez que te escrevi… Desculpa!.. Mas, de facto, tenho andado demasiado ocupado a pensar em tudo o que se passou!.. Sabes, precisei mesmo de fazer aquela viagem de que te falei na ultima carta que enviei.

Não foi fácil decidir-me a fazê-la, abandonar tudo isto aqui e partir, sozinho, sem saber muito bem onde tinha de ir ter!..

Já levava horas de viagem, quando me apercebi que, afinal, a descrição daquele destino, que tinha guardada na minha cabeça, do qual falámos enumeras vezes, sentados àquela mesa de café, com vista para o mar, nas manhãs frias da última Primavera, era insuficiente e demasiado vaga, para me conseguir orientar… Meio perdido, parado no meio daquele caminho, coberto de terra, seca do calor do Sol de Outono, sentei-me numa rocha, com vista para o mar (que luxo!) e, por momentos, viajei até à nossa mesa de café…

Lembras-te da última vez que fomos tomar um café só os dois? Já passou tanto tempo, tantos anos…

Estava uma manhã fria, mas com um sol lindo, sem uma ponta de vento. O céu era azul, claro, apenas com umas pequenas nuvens a adornar aquela verdadeira obra de arte. No mar, conseguia ver o reflexo de tudo o que me rodeava, estava tão calmo, que conseguira tornar-se na tela perfeita para pintar aquele quadro. Tivemos direito a uma manhã digna de ser pintada pelo melhor dos pintores. Como já era normal, cheguei mais cedo e aproveitei para dar um passeio pela praia, junto ao mar. Sempre me fez bem estar tão perto dele. Tirei os sapatos e as meias e caminhei pela areia húmida, até à outra ponta da praia, junto ao farol. O nosso farol… Lembro-me de ter parado e olhado para trás e de ter ficado, por alguns minutos, em silêncio, apenas ouvindo o som das ondas, que quebravam na areia e nas rochas do pontão, a um ritmo muito suave e compassado, e de ter ficado a contemplar aquela vista fantástica, enquanto fazia uma viagem ao passado, aos dias em que fomos realmente felizes, em que passeávamos os dois, ali mesmo, de um lado para o outro, sem nunca nos cansarmos de fazer todas aquelas promessas e dizer todos aqueles sonhos, que agora estão perdidos por aí… A muito custo, reagi à dolorosa verdade de que, naquele dia, tu já não virias com o teu vestido branco e as sandálias do último passeio, que fizemos naquela praia. Vinhas, certamente com os teus óculos de sol, o teu chapéu castanho, com mais uma das tuas camisolas de malha, com aquelas golas altas que, quanto a mim, parecem sufocar toda a alegria, que sei teres dentro de ti. Foste demasiado feliz para agora te esconderes assim, tu sabes isso!.. O que é certo é que o tempo passava e tu não chegavas… Começava a ficar inquieto, preocupado. Voltava então para a nossa mesa de café, com medo de perder o melhor lugar daquela esplanada, o tal lugar que tinha a melhor vista para o mar, a praia, o farol e o pontão… Já me começava a perder na imensidão daquele manto azul, quando alguém apareceu e me tapou os olhos, com as mãos frias, mas muito suaves, muito tuas… Acho que não tive coragem para dizer que sabia que eras tu e, mais uma vez, fingi já não te conhecer. Irritantemente, fizemos, mais uma vez, aquele nosso “teatrinho”, em que ambos nos cumprimentámos com o maior afastamento possível e, ironicamente, perguntámos um ao outro “Então, estás bem?”. Sabíamos, perfeitamente, que a resposta era negativa, mas respondemos os dois com a maior falsidade, “Sim”.

Sei que me faltaram as palavras para ser sincero contigo e para te dizer o quão arrependido estava, por ter tomado aquela decisão que, quer queiramos, quer não, afectou, de tal forma, a nossa vida que, agora, me vejo obrigado a escrever-te esta carta, de tão longe!.. Longe de mais! Não consegues imaginar, certamente, a batalha que se travou dentro de mim, durante aquelas horas, durante aquele reencontro. Faltou-me tudo: a coragem, o sorriso, o olhar, o abraço, o calor do teu beijo… Faltaste-me tu!.. Senti-te tão distante que me vi obrigado a comandar, sozinho, aquele exército de emoções, que se apoderava do meu coração.
A cavalo, percorri as fileiras daquele batalhão de sentimentos, corroídas pelo desânimo, pela tristeza e pela insegurança, fruto daquela fatídica tarde, em que decidimos, os dois, ser cúmplices de uma mentira e de um elogio à hipocrisia deste maldito Mundo, que para nós, apenas se tornou no campo perfeito para esta batalha que, agora, se trava dentro de mim!.. Sempre te disse que não acreditava em nada mais do que na Força do Homem e na sua Convicção. Sempre soubeste que, para mim, tudo esteve nas nossas mãos: o puder de decidir, de sentir, de amar e de sermos um uníssono de paz e alegria. Cavalgamos, sempre, paralelamente. Erguemos as espadas e dirigimos os melhores Elogios à Força e ao Amor. Sempre quisemos ser um só Ser! Nunca me neguei a dar-te tudo o que tinha! Fomos felizes, enquanto éramos só nós, enquanto vivíamos afastados desta praga que nos assola a todo o momento.

Sabes bem que a minha decisão de partir nesta viagem não devia ser mais do que a busca de algumas respostas sobre o que nos levou àquele desespero naquela tarde!.. Por incrível que te pareça, vejo-me, agora, à procura de muito mais do que isso! Mais do que um cliché, é a verdade, sinto-me à procura do meu próprio ser, da minha própria existência!.. Depois de ti, senti-me tão vazio e tão só, eu, que sempre fui tão activo e tão desligado de todas estas questões, vejo-me, agora, obrigado a reconsiderar todos estes anos passados a viver o paradoxo em que se tornou a minha vida!.. Se por lado acredito que ela ganha todo o sentido e atinge o seu expoente máximo, apenas contigo ao meu lado, pelo outro, sinto que, agora, estou à procura de algo mais, algo que, talvez, esteja demasiado longe, ou demasiado perto, que me possa trazer alguma outras resposta, para a qual ainda não me senti preparado a formular uma derradeira questão…

Desde o início desta carta que tenho estado tentado a descrever-te tudo isto por aqui... Não que seja uma tarefa muito fácil, mas sinto-me obrigado a partilhar este espaço de serenidade contigo, é um espaço que acredito, sinceramente, que vais adorar.

Já reparaste que tudo o que tivemos se resumiu a esta distância, a estas cartas que, de alguma forma, parecem manter-nos ligados e intensamente cúmplices um do outro?.. Nunca fui muito bom com as perguntas de retórica e sabes, talvez melhor do que eu, que sempre tive um medo devastador de falar sobre mim, sobre o que penso ou sinto... Medo esse que, ao teu lado, se dissipava num mísero segundo deste Tempo, que insiste em fazer-se passar pela personagem principal desta trama, de que, pelos vistos, somos produtores. Lembraste daquela viagem que fizemos no Verão de há dois anos atrás? Acho que é impossível esquecer todas aquelas noites deitados na rede, presa entre aquelas duas árvores raquíticas, que nem uma sombra digna eram capazes de fazer, durante a manhã, quando acordávamos dentro daquele forno, em que se transformava a nossa tenda. Sabia tão bem passar aqueles finais de tarde a ver o pôr-do-sol, lá ao fundo, na baía, repleta de barcos de sonho, aqueles onde nós acreditámos ir passear um dia… Quem sabe?.. Por muito estranho que possa parecer, quando penso e revivo aquela viagem, consigo recordar-me muito melhor do odor a maresia, que viajava, à boleia, na brisa do final de dia, que arrefecia os nossos corpos quentes, do que propriamente da imagem da praia, da típica vila alentejana, do nosso jipe apinhado de postais e recordações, de todas as outras viagens, que, não sei bem porquê, não consigo esquecer...

Sabes, é esse mesmo odor que paira por aqui, agora que estou sentado no alto, num dos sítios mais bonitos que já vi!.. De facto não está muito calor, mas sabe bem ficar aqui em cima e ser embalado pelos sopros de vento que vão e voltam, a um ritmo demasiado melancólico, como se personificassem as recordações que, inevitavelmente, vão passeando perto de mim…

É Outubro e sabe bem ver os castanhos e os laranjas contrastar com o azul do céu e do mar, o branco das nuvens e o cinzento desta rocha onde estou sentado. Queria tanto que estivesses aqui, que eu pudesse partilhar esta paisagem e este momento contigo… Quem sabe se um dia não te tratei aqui? Seja como for, fica a promessa. Não tem sido fácil deitar-me todas estas noites sem querer apagar tudo o que te disse naquela tarde, mas espero que percebas que esta carta é o inicio de uma longa explicação para o tudo o que se passou e talvez até seja uma espécie de oração a tudo aquilo que ainda se vai passar.

Há dias dei comigo sentado numa praia vazia, aqui perto, com os ombros encolhidos e o olhar cravado na linha do horizonte, com as lágrimas a percorrerem o meu rosto e os pensamentos a vaguearem por entre a solidão daquele final de tarde. A paisagem reflectia o meu estado de espírito: melancólico e triste. O sol escondia-se por trás do mar e as suas cores misturavam-se com a água e o céu, num enredo de vermelhos, laranjas, azuis, cinzentos, amarelos, preto e branco… A areia da praia estava fria e coberta pelo manto preto da sombra da falésia, que me rodeava. O ar sentia-se frio e seco e o silêncio era assustador. Pareceu-me que aquela tarde tinha sido desenhada exactamente para aquele momento. Não disse uma única palavra durante o tempo que ali estive, mas gravei cada palavra, cada sentimento, cada imagem…cada recordação…para hoje poder ser capaz de te escrever e descrever tudo o que se passou. Revivi aquele fatídico dia. Desde o momento em que acordei ao teu lado, até ao final daquela tarde…

(…)

Nuno Rocha

Terminado a 11 de Março de 2007

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